Cheguei ao Egito através da Península do Sinai e cada vez que fui me aproximando da capital uma sucessão de ocorrências, digamos, incomuns a um viajante normal, tornava a estadia no Egito por vezes desagradável. No Cairo parecia que essas dificuldades aumentavam e muito de proporção. Confesso que algumas vezes cheguei a ter inveja dos turistas empacotados que conseguem chegar em casa contando maravilhas das Pirâmides de Gisé, de um passeio no Nilo ou que nunca tiveram que atravessar a pé uma avenida na capital. Mas falar dessa ou outras cidades do Egito será assunto para outros posts aqui no blog. Agora, o que mais interessa agora são as pessoas que vivem naquele lugar e que são mostradas como multidões de milhões foram para as ruas após, de repente, acordarem de um pesadelo de 30 anos.
Na portaria de um hotel no Cairo encontrei alguém que desatou o falatório: "Quero ir embora desse país. Não aguento mais essa gente desonesta, essa confusão, desordem..." O cara ia falando e eu concordando, lembrando que até aquele momento, tinha passado por vários episódios que me faziam também testemunha daquele festival de reclamações. Desde o serviço de informações do aeroporto que jurava que não existia transporte público até a cidade, para em seguida tentar te fazer uma venda casada de transfer e hospedagem em hotéis, até os malfadados taxistas que te abordam na rua falando um inglês razoável e, quando você entra dentro do carro deles - que jamais tem taxímetro- , num passe de mágica esquecem a língua e você descobre que embarcou numa viagem possivelmente para o inferno. Lembrei também dos policiais que somente assistem ao caos das ruas, já conformados com sua condição de inutilidade social e também da imensa quantidade de camelôs nas ruas, exagerada até para uma cidade de 8 milhões de habitantes, revelando uma massa desempregada jogada no vale-tudo pra sobreviver. Aí eu já ia só balançando a cabeça e concordando com a ladainha do cara na recepção do hotel. Só que o detalhe era que ele não era um visitante chateado com um país que tinha tudo pra ser apenas fascinante, mas acumulava uma sucessão de decepções. Quem reclamava da vida era justamente o recepcionista do hotel, um cara que passava dos 30 anos e creio que quase todos eles sem a menor esperança de ver a situação do seu país melhorar. De longe, olhava pra nós o superior dele. Se afastou quando a conversa começou, mas não parecia reprovar. Não tenho dúvida alguma que o recepcionista esteve nas ruas todos esses dias que houveram protestos. Como ele, também estavam lá várias outras pessoas que vi, ou de certa maneira conheci, percorrendo o Cairo, sempre o mais longe possível das ruas que eram reservadas para enganar os turistas, onde o cidadão local não é (ou era) muito bem vindo. As fotos abaixo mostram os rostos deles fora da multidão, no que era o seu cotidiano até os dias finais de janeiro de 2011.
Na foto acima, jovens egípcios típicos, que nasceram sob o regime do Mubarak. Eram figuras comuns nas ruas da capital, desocupados ou procurando algum biscate, como vendedor de loterias, sempre na esperança de ascender socialmente e ter sua própria banca de camelô.
Ao lado, Dahab, um jovem sapateiro cristão copta. Esse grupo religioso soma apenas cerca de 10% da população do Egito. O restante é muçulmano do ramo sunita. Se quisessem transformar o país numa ditadura religiosa radical, como temem os israelenses e os editores da revista Veja, os egípcios teriam que importar os xiitas de outros países como, por exemplo, o Irã ou Iraque.
Pinta de playboy, mas pouca grana na carteira.
Acima, os senhores alfaiates de Downtown. Em tempos de crise, vale mais remendar o velho que comprar novo.
O vendedor de pães e doces na rua.
Esse era um vendedor de peças para carro com banca na rua. O Fiat atrás dele faz parte da frota de milhares de veículos decrépitos abandonados nas ruas do Cairo.
Garçons de um restaurante fora da rota turística e clientela rara.
Costume local é sentar nos lugares que conhecemos como bar, para tomar chá, já que bebida alcóolica está fora de questão.
Pausa no corte de cabelo para a pose pra foto. Se o fotógrafo pede licença, ganha a simpatia e muitas vezes o convite pra o chá.
Mulheres tímidas, que se escondiam atrás dos véus e burcas, se revelaram valentes nas manifestações contra o governo.
Crianças são o futuro da nação. Mas antes se tem que dizer pra esses aqui de que nação você estava falando.
Mais fotos em www.flickr.com/leovillanova
12 COMENTE AQUI:
grande e querido amigo
mais que oportuno
no tempo e no lugar certo
belo ensaio
ainda faremos isso juntos
abraço grande
Léo, acho que quando a gente tem oportunidade de ler/ver essas histórias, a gente se sente menos bitolado no nosso mundinho, lembra que não é o centro do mundo né? Seu relato está belíssimo. Eu quase pude ouvir a voz do recepcionista, sentir o cheiro do pão e doces do vendedor ambulante e ouvir as risadas das tímidas mulheres e das crianças.
Suas fotos tem vida, parecem ter som.
muito bom. fodaço.
Você está impossível mesmo!
Mais uma viagem contigo.
Agradeço imensamente este passeio.
Abraço
Adriana
MESTRE LEO,
VOCÊ ESTÁ CADA DIA MAIS SENSACIONAL.
BELISSIMAS FOTOS, COM TEXTURA E QUALIDADE INTERNACIONAIS.
PEDRO LUIZ JÁ TINHA FALADO COM ENTUSIASMO DESTE SEU TRABALHO. ESTAVA QUERENDO VÊ-LO. AGORA ISTO ESTÁ RESOLVIDO. PARABÉNS.
PELO QUE JÁ VI -E APLAUDI- VALE UMA EXPOSIÇÃO DESTA E DE OUTRAS EXPERIÊNCIAS PESSOAIS E PROFISSIONAIS.
UM ABRAÇÃÃÃÃÃÃO
DO MARCIO CANUTO.
Fotos bacanas, amigão.
Texto dá vontade de estar presente
na aventura.
Abraço.
Hermann
Parabéns. Um belo registro.
Obrigado aos amigos pela visita e os comentários generosos.
Abraços a todos os que passam por aqui.
Léo, você quase pega a revolta popular contra o regime de escravidão vigente no Egito. Caso estivesse por lá, teria presenciado um movimento da importância, para o Oriente Médio, que teve para a Europa a queda do muro de Berlim. Contudo, você capturou o instante dramático e histórico que precede a explosão. Conseguiu imprimir uma forma artística e um explícito conteúdo de solidariedade nas imagens. Vejo em suas imagens uma civilização de mais de seis mil anos vivendo, hoje, como a civilização ocidental vivia em fins do século XIX. São imagens densas, arrebatadoras, reveladoras do ódio dos poderosos pelos seus patrícios e do que sobrou de amor e amizade permeando as relações sociais naquele lugar. Você construiu um libelo contra a impunidade e o abandono das populações pobres do mundo à sua propria sorte. Fotojornalismo internacional, com destino certo: galeria de arte. Viva o bravo povo Egípcio!!!!!!!! Luis Eduardo Vaz
Maravilha, Léo, como sempre, arrasou nas fotos e os textos estão na medida também.
Grande abraço!!!
Léo,
A gente vê as notícias mas não assimila muito bem. É tudo tão distante e impessoal. Seu trabalho nos deixa próximos a essas pessoas, humaniza as notícias. Vou acompanhar os acontecimentos com mais atenção a partir de hoje.
Gênios são as pessoas que pensam diferente do senso comum e apresentam novas perspectivas, uma nova forma de olhar o mesmo. Você é genial, eu sempre achei.
kisses
Só tive tempo de ver com calma esse post hoje. :) Lindíssimo. Fotos incríveis!
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